Introdução do livro

Infância, a Idade Sagrada
Autora: Evania Reichert
Edições: Vale doSer

"Eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro."
Jean Paul Sartre

O século XX foi mesmo revolucionário e tirou muitas coisas de seus antigos lugares, pelo menos no mundo Ocidental. O pai hegemônico, enfim, parece ter perdido seu trono de mandante supremo dentro do lar e do grupo social. Se ele ainda ocupa essa posição em determinadas famílias e instituições, não conseguirá permanecer aí por muito tempo. O medo como conduta educativa foi-se tornando estéril, fadada ao fracasso. Mesmo assim, a educação hierárquica - que parecia ter sucumbido no século passado - vez por outra ressurge, colocando-se como solução à falta de ordem e limite das novas gerações.
Entretanto, depois das tantas mudanças culturais que ocorreram nas últimas décadas e do fim da estrutura familiar tradicional (chefe da família, mulher e filhos), já não se respeita mais quem cultiva condutas de autoritarismo e desrespeito biopsicológico entre as pessoas ou relações de abuso com a Natureza. As novas gerações simplesmente passaram a deixar de obedecer a autoridades paternas ou maternas com perfil patriarcal. Até parece que leram Henri Thoreau, em seu livro sobre desobediência civil.
Uma mudança profunda vem acontecendo nos modos de relação entre adultos, crianças e adolescentes, desestabilizando pais e educadores, que seguidamente confundem respeito com medo e buscam reconquistar sua autoridade, à moda antiga, na base do custe o que custar. Se antes temíamos e amávamos o patriarca ou seu representante, hoje já não se admira mais esse poder e nem se respeita sua dominação. Essa mudança já aconteceu e poderia ser motivo de uma grande celebração, aos moldes daquelas festas da subterrânea Sião, do filme Matrix.
Afinal de contas, a maioria das gerações do século XX empenhou parte de sua vida na luta pela quebra desse paradigma, tanto no âmbito das relações pessoais quanto nos sistemas sociais, educacionais, trabalhistas e políticos. Ainda hoje, tais movimentos repercutem idéias que mudaram o mundo do século XX por meio da Psicanálise, do Humanismo, do Modernismo, do Feminismo, da Nova Escola, da Democracia, do Socialismo, do Movimento Ecológico, do Movimento pelos Direitos Humanos, além da libertária Revolução Cultural e Sexual dos Anos 60.
Porém não conseguimos festejar a mudança mais profunda, talvez porque ela ainda não esteja clara, e a confusão ao redor nos assuste. Ao mesmo tempo, a onda de negatividade inunda os dias atuais enquanto permanecemos confusos entre a forma antiga - que está-se desfazendo - e a nova, que ainda não se configurou. Na atualidade, as novas famílias têm-se constituído de modos inéditos, que seriam inaceitáveis anos atrás. Os antigos papéis de pai e mãe e seus modelos familiares, assim como as relações hierarquizadas, encontram-se em total transformação.
Atualmente, as crianças apresentam comportamentos antes nunca vistos, com posturas de confronto e desacato a pais e a professores. A agressividade e o desrespeito são crescentes, assim como a drogadição e a falta de regulação das emoções. Também se tornou comum, especialmente nos centros urbanos, que as crianças se mostrem sérias e fechadas na maior parte do tempo. São habituais os diagnósticos de hiperatividade, déficit de atenção, fobias, ansiedade generalizada e depressão. A confusão é grande e corremos o risco de nos alongarmos nesse emaranhado - que causa grande sofrimento psíquico e social - caso não se vislumbre novos caminhos.
Entretanto, apesar do caos, continuamos avançando. O impasse desse momento faz parte do processo de mudança: voltar atrás, para o que já conhecemos, ou então, seguir em frente, onde existe o novo, o desconhecido. O ponto mais crítico é exatamente esse, quando nos percebemos vagando pela desconcertante terra de ninguém. Nela nada é estável, nem evidente, já que sofre contínua transformação. Embora estejamos frente a frente com novas possibilidades, a perda das antigas referências produz uma bruma de angústia e temor do futuro, o que dificulta a percepção do caminho a seguir.
Mesmo sendo um tempo difícil - até mesmo horrível - como disse Jean Paul Sartre, em 1963, é apenas mais um momento do nosso longo desenvolvimento histórico. Antes da Renascença, o caos era proporcionalmente similar, com acentuada rebeldia estudantil, perda dos referenciais e desestabilização total dos valores vigentes. Assim como ocorre hoje, alguns professores da época também deixaram de ensinar devido à inquietude, ao desinteresse e à impetuosidade dos jovens de então.
O psiquiatra e educador Cláudio Naranjo, autor de Mudar a Educação para Mudar o Mundo, ressalta que assim como o Renascimento Italiano se centrou em torno da arte, o renascimento da nossa época se dará em torno do psicológico. Parece certo que as crises mais profundas que presenciaremos a partir de agora serão de cunho psicológico. Exemplo disso são os muitos casos de desequilíbrio emocional, depressão e suicídios de crianças e adolescentes de famílias abastadas, que têm recursos financeiros para oferecer o melhor às suas crianças, mas vivem as dores da miséria afetiva e de sua assustadora escuridão.
No inverno de 2005, o suicídio de um menino de dez anos na cidade de Porto Alegre (RS) desencadeou a feitura deste livro. O pré-adolescente deixou uma cartinha, alegando não suportar mais viver a solidão de sua casa e a depressão de seus pais. É sempre doloroso quando alguém desiste da vida, seja jovem ou adulto, mas é possível levantarmos hipóteses sobre as freqüentes crises de identidade, os surtos e as depressões agudas. Porém, quando uma criança se suicida, resta-nos apenas o espanto. O suicídio não é uma hipótese da Infância. Nessa idade, ele se torna ainda mais violento, desconcertante, inverossímil e infinitamente triste.
Dados igualmente alarmantes foram apresentados em uma pesquisa da Fundação Osvaldo Cruz sobre o índice de suicídios de adolescentes e de jovens de até 25 anos no Brasil: a capital do Rio Grande do Sul tem a mais alta taxa de suicídios do País, com a média de 7,63 por grupo de 100 mil habitantes, maior que países como a Holanda e a Inglaterra. Depois de Porto Alegre, estão Curitiba (7,3), Belém (6,7), Recife (6,3), São Paulo (5,8) e Fortaleza (4,8). O crescimento anual de casos de suicídio de adolescentes e de adultos com até 25 anos cresce 4% ao ano, em média.
É claro que a realidade não é feita apenas desses destemperos. Um movimento ascendente de humanização nas relações começa a fazer a diferença. Entretanto, fechar olhos, bocas e ouvidos não parece ser uma boa medida, até porque nunca tivemos tantos recursos e meios para informar e prevenir. Nunca, na História da Humanidade, soubemos tanto sobre desenvolvimento infantil quanto sabemos hoje. E, ao mesmo tempo, a falência dos modelos anteriores, nitidamente patriarcais, abre espaço para um novo paradigma educacional, familiar e social.
Estamos diante de uma possibilidade que nunca se deu ao longo da História, observa Naranjo, em Agonia do Patriarcado (1992). Não se trata mais de sistemas patriarcais, matriarcais ou filiarcais, que já tiveram seu tempo áureo e sua queda. Segundo o psiquiatra, esse é um momento inédito, raro, em que o resgate do sentido genuíno da educação poderá apressar a transposição desse tempo. O novo não será traduzido pela língua patriarcal nem mesmo pelo nostálgico idioma matriarcal ou matrilinear, já que seus códigos são distintos.
O processo de transcendência do patriarcado, segundo Naranjo, poderá ser agilizado por meio da harmonização das energias do pai, da mãe e do filho, substituindo a educação hierárquica pela heterárquica, na qual todos participam das decisões. Segundo o psiquiatra, essas três partes formam nossa interioridade, e o equilíbrio entre elas constituirá um recurso para aprendermos a conviver melhor com as pessoas, enquanto regulamos nossa tendência hegemônica de sermos patriarcais, matriarcais ou filiarcais em nossas relações.
A falta de respeito é o resultado da predominância de uma dessas partes sobre as outras. Sempre que há hegemonia, há falta de respeito e abuso. Nesse sentido, mesmo a anarquia pode impor-se sobre os demais, com seu individualismo filiarcal. O respeito genuíno é um princípio ético e básico da condição humana, e sua ausência é a mais sentida na sociedade atual. Não podemos querer que as pessoas nos amem, mas é possível desejar que elas nos respeitem.
O cultivo deliberado de respeito biopsicológico, auto-regulação e de bons vínculos poderá ser um recurso para que a criação de crianças se volte mais ao desenvolvimento pleno do que à manutenção das máscaras sociais. É claro que isso exigirá transformações pessoais em nossos modos de relação e de atuação. Na atualidade, dificilmente vamos promover mudanças externas sem o interativo interno, psicológico. O cultivo de respeito psíquico e físico dos adultos com os pequenos - sejam eles nossos filhos ou não - e dos adultos entre si é o grande desafio de hoje. O resto virá como conseqüência.
O projeto deste livro, assim como a realização do curso Vínculos Vitais - Educação e Prevenção, nasceu dessas reflexões. Inicialmente foi inspirado no trabalho apaixonado de Wilhelm Reich, psiquiatra, cientista e humanista, que criou o primeiro projeto de prevenção das neuroses, dirigido a pais e educadores, ainda nos anos 20 do século passado, em Viena, na Áustria. Posteriormente, recebeu o reforço sábio de Naranjo, cujo projeto de Educação para Ser está igualmente apoiado em idéias libertárias e preventivas, e - o mais importante - esperançosas e humanizadas.
É importante distinguirmos a raiz da proposta reichiana na educação, cujos conceitos norteiam nosso estudo sobre a Infância. Considerado o pai das psicoterapias corporais, Reich compreendeu que o ser humano nasce emocionalmente saudável, com suas potencialidades latentes para posterior desenvolvimento. Porém, já no início da vida, sofre a ação neurótica do meio familiar e social, que interfere sobre a estrutura em formação, constituindo assim as estruturas de caráter e os modos defensivos e programados de pensar, sentir e agir.
A educação repressiva e autoritária - ou ainda a conduta negligente e pouco afetiva de pais, educadores e cuidadores - segundo Reich, revela as marcas da Infância do próprio adulto, que se refletem em seus modos de educar, tonalizando suas ações e reações diante dos pequenos. Na abordagem reichiana, a neurose não é apenas uma estrutura psicológica como entende a Psicanálise (psicose, neurose, perversão). Trata-se de uma doença de massa, produzida pelo contexto social, que, além de ser tratada, deve ser prevenida.
A neurose social agrava os padrões patológicos do caráter dos adultos e compromete o desenvolvimento saudável e auto-regulado das crianças. Reich passou a enfatizar a prevenção em projetos voltados a educar o educador. O conceito de auto-regulação, que contempla o respeito ao tempo, aos ritmos e às características da criança, tornou-se central nessa abordagem, desde as etapas primitivas do desenvolvimento infantil.
O trabalho de Reich e dos médicos de sua equipe iniciava junto às gestantes, buscando a prevenção possível das psicoses, das anomalias físicas e das doenças psicossomáticas geradas no início da vida. O foco sempre foi conscientizar pais e cuidadores sobre a delicadeza do desenvolvimento inicial, em que tanto a herança genética quanto o ambiente podem interferir no desenvolvimento pleno do bebê. Também ocorria uma revisão da própria Infância de pais e educadores, identificando os padrões reativos de seu caráter que apareciam em seu modo de educar.
Recentemente, a Neurociência também comprovou, com sofisticados exames de imagem, o que a Psicologia já dizia há cerca de um século: após o parto, necessitamos de um útero psicológico, pois nascemos com o cérebro incrivelmente inacabado. Cerca de ¾ do neocórtex (a camada pensante do cérebro, que nos distingue dos outros animais) necessita dos anos da Infância para completar sua formação. Outro dado novo, revelado por neurocientistas, é que a afetividade produz um hormônio que estimula as conexões neurais, fundamentais ao desenvolvimento inicial do cérebro e ao amadurecimento da estrutura infantil.
As descobertas da Neurociência ratificam antigas revelações da Psicanálise: o desenvolvimento infantil se dá por etapas, o que significa que determinadas idades são especialmente favoráveis para a consolidação de pontuais aptidões emocionais, cognitivas e físicas. São momentos especiais, em que certas áreas do cérebro estão em maturação, facilitando a brotação de habilidades, desde que o meio seja suficientemente bom. Por isso, as fases são chamadas de períodos preciosos e sensíveis e tanto se fala de bons vínculos e condutas educacionais conscientes na Infância.
A compreensão de que a criança não nasce emocionalmente pronta veio com Freud, que revelou o inconsciente, a sexualidade infantil e a relação direta entre vínculos familiares e doenças mentais. Não faz tanto tempo assim - apenas cem anos - que a criança ainda era vista com um adulto em miniatura, que precisava apenas receber alimento e treinamento físico para se tornar forte e, então, trabalhar e procriar. Aos sete anos, os meninos eram enviados ao trabalho duro e às guerras. E as meninas, aos doze anos, passavam a ser mulheres destinadas ao sexo ou ao casamento. Na verdade, ainda é assim na maior parte dos países do mundo, onde o trabalho infantil e o desrespeito à sacralidade da Infância é uma dura realidade.
Em 2001, marcando a chegada ao Terceiro Milênio, a Organização Mundial da Saúde lançou um importante alerta em seu Relatório Sobre a Saúde no Mundo, em que destacava as conseqüências dos problemas emocionais da Infância na formação do cérebro, ratificando a relação da depressão e da pseudodebilidade com a ausência de bons vínculos entre crianças e cuidadores durante a Infância Inicial.
Essa realidade vem-se agravando nas últimas décadas, devido à presença efetiva da mulher no mercado de trabalho e à terceirização da educação dos filhos. Segundo a antropóloga Jurema Brites, a família nuclear moderna cortou os laços de solidariedade, comuns nas famílias extensas do passado rural ou nas sociedades tribais, nas quais outros parentes, amigos e vizinhos incumbiam-se coletivamente do bem-estar dos pequenos.
"Exemplo típico desse tipo de sociedade são os povos de língua Arapesh, descritos por Margareth Mead em Sexo e Temperamento. Remarco essa diferença porque muitos povos - assim como as mulheres pobres - desde sempre estiveram atrelados ao mundo do trabalho. No entanto, em nem todas as sociedades suas crianças foram delegadas ao cuidado pragmático e frio das instituições, responsáveis pela formatação do homem moderno e racional", observa a antropóloga (em entrevista à autora).
Realmente, na atualidade, a criação de filhos necessita passar por uma revisão profunda, em especial, no modo como se estabelecem os vínculos psicoafetivos entre adultos e crianças durante a Infância Inicial. A Organização Mundial da Saúde vem enfatizando a qualidade dessa relação como essencial à prevenção de danos cerebrais no início da vida, assim como alertava Reich, ainda em 1920. Há cerca de cinqüenta anos, quando essas idéias estavam em expansão, ele foi preso, acusado de impostor. Suas descobertas sobre o funcionamento da energia vital (Orgônio ou Orgone), as revelações sobre a passagem da matéria inanimada à animada, assim como sua participação no movimento de prevenção das neuroses, foram os motivos de perseguição e prisão, na época.
A abordagem reichiana focaliza a leitura e o trabalho sobre o corpo, considerando a relação entre pulsação vital e estrutura corporal do caráter. Por isso, saúde e educação formam um conceito integrado e inseparável na prevenção das neuroses. Condutas educativas repressivas ou geradoras de tensão com freqüência podem vir a comprometer a saúde física e psicológica das crianças, mesmo quando os adultos não têm essa intenção e desconhecem o alcance de suas ações e reações.
Durante 15 anos Reich atuou como médico-psicanalista e dedicado aluno de Freud. Como cientista, inicialmente voltou-se à comprovação biofísica da Teoria da Libido de seu mestre e aos estudos sobre o caráter, produzindo a primeira grande obra sobre o tema, chamada Análise do Caráter, lançada em 1933. A mais importante descoberta de Reich, entretanto, foi a energia vital (Orgone). Ao aprofundar suas pesquisas sobre a Libido - a energia dos instintos descoberta por Freud - ele desvendou que essa não se tratava apenas de uma energia sexual, mas a própria energia expressiva da vida, que pulsa em todos os seres vivos.
Na mesma época, o antropólogo Bronislaw Malinowski realizava pesquisas revolucionárias com os nativos das ilhas Trobriand, que ainda hoje são referenciais da Antropologia Social. A pesquisa sobre essa sociedade matrilinear revelou que as crianças viviam o seu desenvolvimento sexual em total liberdade e que os adultos não revelavam perversões sexuais, tão comuns em nossa cultura.
No grupo social pesquisado por Malinowski, o pai não ocupa o papel hegemônico como se dá nas sociedades patrilineares, e as dinâmicas emocionais entre adultos e crianças são completamente diferentes da cultura branca ocidental globalizada. A idéia de matriarcado geralmente nos remete ao conceito de mando feminino, ao governo de mulheres. Entretanto, a História e a Antropologia Social apontam que tais sociedades, na verdade, são matrilineares. Dentro delas, a transmissão de bens, direitos políticos e religiosos são transmitidos pela linhagem materna. Porém o poder da mãe, raras vezes foi o de ser a chefe, mas se traduzia na forma mais indireta e nem por isso menos forte de a grande mãe do chefe.
Na mesma época, o aspecto universal e biológico do Complexo de Édipo, basilar e estrutural da Psicanálise freudiana, passou a ser questionado. Se o pai não era importante em Trobriand, se a sexualidade infantil era livre, se não havia competição biológica entre pai e filho e não existiam perversões sexuais naquele grupo social, será que o conceito de complexo edípico se aplicaria a todos os grupos sociais? Seria esse complexo, universal e biológico, como dizia Freud?
O pai freudiano, símbolo da ordem e do limite, poderia ser apenas um reflexo da arraigada sociedade patriarcal e altamente moralista da época, quando Marx e Freud lançaram suas idéias revolucionárias. Foi o que defenderam, ainda nos anos 70, o sociólogo Giles Deleuze e o psicanalista Félix Guatarri, ao lançarem o livro Anti-Édipo, como veremos neste livro, na parte 4 do capítulo III.
Reich começou a se opor frontalmente a Freud, ao descobrir o núcleo saudável da estrutura humana e a importância da auto-regulação como caminho saudável no desenvolvimento psico-físico das crianças. Nesse sentido, as pesquisas de Malinowski foram da maior importância, fortalecendo sua posição de que a repressão da sexualidade natural era causa das neuroses. Reich contestou seu mestre em pelo menos três pontos centrais.
a) Refutou o conceito de pulsão de morte de Freud e sua afirmação de que as pulsões destrutivas são inerentes ao ser humano. Para Reich, os impulsos de destruição surgem como reação, tratando-se de um processo secundário. Ou seja: a natureza humana é saudável e adoece por meio do contato com a neurose social. Para Freud, o ser humano já nasce com pulsões destrutivas (antivida) e pulsões de prazer (pró-vida), que vão lutar entre si (Eros & Tanatos).
b) Contestou a efetividade da sublimação das pulsões sexuais por repressão e recalcamento, enfatizando que a sublimação por auto-regulação é o caminho saudável na formação infantil. Para Reich, a etapa de Latência (dos seis aos doze anos), identificada por Freud, ocorre somente quando há repressão ou abuso diante da natural sexualidade infantil.
c) Reich enfatizou que a Psicanálise da época estava-se tornando retórica e que tinha se afastado de suas origens biológicas e de seu papel social e libertador.
Durante a década de 30, os movimentos de prevenção da neurose ganharam grande popularidade, com rápida adesão de milhares de jovens trabalhadores e estudantes. Devido à aceitação massiva de suas idéias inovadoras - o que acabou incrementando a revolução sexual dos anos 60 - o psiquiatra se tornou foco de muita polêmica e, diante de seu perfil enfático e confrontador, foi expulso tanto do Partido Comunista quanto da Sociedade Psicanalítica.
O processo de oposição ao autor se deu durante a ascensão do Nazismo na Alemanha. Na época, os dirigentes do Partido Comunista passaram a criticar Reich porque ele defendia que a teoria marxista precisaria de um interativo psicológico. O PC temia a adesão massiva dos jovens socialistas às idéias de Reich e o afastamento dos mesmos do aspecto puramente econômico do Socialismo.
Do outro lado, a Associação Psicanalítica Alemã temia as reações sociais e políticas às pesquisas psicológicas de Reich, alegando que estas poderiam trazer prejuízos à sua atividade dentro da Alemanha, assim como gerar perseguição aos psicanalistas da época. Segundo Ola Raknes, aluno de Reich, depois de muitos embates e reuniões, a Associação Internacional para a Psicanálise, concordou em expulsar o criador da psicoterapia corporal, sob protesto do grupo dinamarco-norueguês, que defendia a liberdade de pesquisa do psicanalista.
Ele também foi intensamente criticado por insistir que a repressão e as inibições sexuais eram causadoras das neuroses, e por se envolver pessoalmente em lutas por mudanças sociais. Na época, foi acusado de estar fazendo uso impróprio das pesquisas de Malinowski e de propagar que crianças e adolescentes deveriam viver sua sexualidade infantil de forma livre e natural, como nas ilhas Trobriand. Então, o próprio Malinowski refutou as acusações feitas a Reich, por meio de cartas de apoio ao cientista.
Em 1957, por causa de um suspeito quadro de infarto, Reich faleceu. Prevendo sua morte, destinou seus bens à Fundação Wilhem Reich de Proteção à Infância, atuante até os dias de hoje. Deixou em testamento um pedido marcante: que todos os seus escritos - os que ainda não tinham sido queimados pelas autoridades da época - fossem lacrados e ficassem guardados até 2007, na Countway Library of Medicine, em Boston, Estados Unidos. Ele acreditava que as crianças e os cientistas do futuro poderiam compreender suas descobertas. Tais arquivos estão sendo abertos, ainda em sigilo, pela direção da Fundação Wilhelm Reich e deverão ser divulgados em breve.
Cerca de três décadas depois de sua morte, em 1982, o hoje renomado físico Fritoj Capra lança o livro O Ponto de Mutação. Nessa obra, que revolucionou as concepções de mundo de então, Capra confere a Reich o pioneirismo conceitual da Teoria de Sistemas, que veio a ser o novo paradigma, a partir da Física Quântica. O físico destaca a concepção inédita de pensamento funcional, apresentado por Reich na primeira metade do século passado, quando ele já afirmava que a natureza é funcional em todas as suas áreas e que não tolera quaisquer condições estáticas. Um dos motivos da prisão de Reich foi sua descoberta sobre a passagem da matéria inanimada à animada.

O conceito de orgônio é, sem dúvida, a parte mais controvertida do pensamento de Reich e foi o que motivou seu isolamento da comunidade científica, a perseguição e a morte trágica. Do ponto de vista da década de 80, Wilhelm Reich foi um pioneiro no que se refere à mudança de paradigma. Teve idéias brilhantes, uma perspectiva cósmica e uma visão holística e dinâmica do mundo que superou largamente a ciência de seu tempo e não foi apreciada por seus contemporâneos. O modo de pensar de Reich, a que chamou de funcionalismo orgonômico, está em perfeito acordo com o pensamento da nossa moderna teoria de sistemas. (Capra, 1982, p. 337)

No campo da sexualidade e da liberdade expressiva, menos de uma década foi necessária para que as idéias de Reich tivessem se tornado um dos motores da Revolução Sexual dos anos 60 e 70, ao lado de outros pensadores libertários da época. Foram milhares de jovens que, cansados das guerras freqüentes, levantaram a bandeira branca, dizendo "Paz e Amor". Nesse momento, o jovem médico psiquiatra chileno Cláudio Naranjo estava chegando aos Estados Unidos, na Califórnia, berço de uma revolucionária transformação de costumes. Como lembra Naranjo, era tão impressionante o que estava acontecendo e em tão grandes proporções, que parecia certo que o mundo enfim estava mudando.
Posteriormente, nos anos 80 e 90, era inconcebível que um refluxo tão drástico pudesse estar ocorrendo, quando nada de novo surgia, e o pessimismo marcava sua forte presença. Mesmo assim, nada mais era como antes dos anos 60. As idéias patriarcais tentavam reconquistar credibilidade, mas não tinham mais o vigor de antes, embora a esperança também estivesse em baixa. Foram anos estranhos, patéticos, de disfarçada espera, que remetiam ao enredo do memorável texto "Esperando Godot", de Samuel Becket.
Enfim, chegamos ao século XXI, em meio ao caos, mas com novos ares oxigenando o mundo. São inúmeros projetos, escolas, grupos, empresas, livros, discos, filmes, peças de teatro, obras de arte, além de iniciativas comunitárias, cooperativas, ecológicas e de desenvolvimento de cidadania, que vislumbram a prevenção e a educação como caminho efetivo para um novo tempo.
Cláudio Naranjo coordena um desses importantes projetos: o SATeduc, voltado ao professorado, que propõe um trabalho de conscientização do educador, por meio da revisão biográfica de sua própria Infância. Esse processo vem acontecendo em diversos países do mundo e, atualmente, está sendo encampado por ministérios e secretarias de educação do Chile, México, Itália, Espanha, Argentina e Brasil (Rondônia).
Neste livro sobre a Infância, trataremos da dinâmica nas relações entre adultos e crianças ao longo das fases de desenvolvimento e da proposta de prevenção das neuroses na educação e na criação de crianças. Aprofundaremos o estudo sobre cada etapa, da gestação à puberdade, procurando contemplar linguagem acessível com informações consistentes, na busca de mobilizar esperança, inspiração e compromisso com a Infância.
A proposta central deste trabalho é promover o cultivo deliberado de auto-regulação, respeito biopsicológico e bons vínculos como norteadores educativos na relação adulto-criança. Essa tríade contempla a prevenção e, ao mesmo tempo, cria caminhos a fim de que ocorra uma transformação do modelo de educação hierárquica para uma prática educativa mais democrática e respeitosa. A relação entre mãe, pai e filho, sem hegemonia de um sobre os outros, poderá tornar-se profundamente amorosa, como observa Naranjo.
A pedagogia inspirada em Wilhelm Reich entende a auto-regulação como fundamental na criação de crianças. O seu cultivo respeita os ritmos naturais de cada criança e leva os adultos a considerarem os efeitos de suas condutas sobre a saúde psíquica e física dos pequenos. É um princípio sistêmico e altamente transformador, porque o adulto que cultiva auto-regulação precisará aprender a se auto-regular, o que mexerá em todo o sistema familiar.
Você encontrará nos capítulos I e II, assim como na introdução do III, os conceitos centrais dessas propostas educativas, preventivas e libertárias. Nas cinco partes que compõem o capítulo III e no capítulo IV, poderá ver como se dão as etapas do desenvolvimento emocional e psicossocial (da gestação à puberdade) e suas crises normativas, apresentadas a partir de estudos comparados entre diversos autores e teorias.
Além de Reich e seguidores (Federico Navarro, David Boadella, Alexander Lowen, Elsworth Baker e seus alunos), teremos a contribuição fundamental do pediatra e psicanalista Donald Winnicott, cujos conceitos se afinam com as idéias reichianas, além de seu profundo aporte sobre os cuidados suficientemente bons na Infância.
Erik Erikson é outro autor importante neste estudo, por suas pesquisas psicossociais sobre as fases de desenvolvimento, que são elucidativas e didáticas, muito úteis para pais e cuidadores. Seus estudos sobre a Adolescência, que receberam acréscimos do canadense James Márcia, esclarecem como as pendências das fases precursoras são reeditadas a partir da puberdade e podem ser integradas antes da idade adulta.
Em cada fase focalizada, citaremos pontualmente estudos cognitivos de Jean Piaget e Lev Vygostsky. Também teremos a contribuição do médico Ricardo Jones, sobre a humanização do nascimento, além de referências aos estudos do psicanalista Wilfred Bion sobre impulso epistemofílico e às revelações recentes da Neurociência, com relação ao desenvolvimento inicial do cérebro.
O capítulo V descreve brevemente o caráter auto-regulado, chamado de estrutura genital na abordagem reichiana, seguido de um texto de conclusão. O estudo sobre cada estágio é encerrado com as características que surgem na formação do caráter, quando ocorre interrupção branda ou grave no fluxo de desenvolvimento. Trata-se de uma breve descrição dos tipos caracterológicos e das biopatias (psicopatologias e doenças psicossomáticas derivadas dos bloqueios energéticos de cada fase).
As idéias educacionais para o nosso tempo, originárias da Educação Trinitária proposta por Naranjo, permearão diversos temas e capítulos desta edição. No encerramento de cada parte há uma página de reflexão, destinada aos que desejam checar o conteúdo assimilado, o que poderá aprofundar a compreensão do assunto.
Para nós, cidadãos de um tempo que revela graves e crescentes problemas no desenvolvimento emocional e psicossocial, as idéias preventivas de Reich e a compreensão esperançosa de Naranjo parecem ser uma escolha cada vez mais atual, real e ética: "fazer o possível dentro do impossível", como pensava Reich, em busca de "mais saúde e humanização", como diz Naranjo.
Evânia Reichert
Outono de 2008